Entrevista com a Doutora em Educação (PUC-SP) Guiomar Namo de Mello, que atualmente é diretora da EBRAP, Escola Brasileira de Professores. Guiomar também possui Pós-Doutorado em Educação Comparada pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres, Inglaterra.
Carol:
Você está escrevendo o Plano de Educação do Estado de São Paulo em conjunto com o Professor Ruy Berger. Que eixos estão sendo priorizados?
Guiomar:
É claro que eu não estou fazendo isso sozinha, tem um grupo grande que está escrevendo. O que vai ser priorizado são as linhas da política educacional que a secretaria está adotando neste momento e que tem a ver de um lado com maior responsabilização, com toda a política do IDESP, pagamento de bonus etc. No eixo da qualidade um amplo movimento de reforma curricular, que a secretaria começou praticamente há um ano, um ano e meio, e que está sendo consolidado agora, e que mudou muito o tipo de educação em serviço dos professores, pois vamos fazer toda esta parte volta especificamente para a proposta curricular. Não será mais uma educação em serviço sem foco. O plano pretende também fortalecer todo o processo de municipalização, que continua correndo no estado de São Paulo. Esses são alguns dos eixos importantes das políticas atuais.
Carol:
Qual o tipo de responsablilização que ocorre no estado de São Paulo?
Guiomar:
O que a secretaria implementou e que já saiu no jornal por esses dias (24 de março de 2009) a partir da avaliação do SARESP, que é o sistema de avaliação do estado de São Paulo, calcular um indicador semelhante ao IDEB, mas eu não saberia dizer aqui os detalhes técnicos, e a partir deste indicador será possível avaliar o quanto que a escola progrediu e a partir do progresso de cada escola estabelecer um incentivo financeiro para os professores, para os diretores etc. Na linha da responsabilização eu acho que o carro chefe é este.
Carol:
Qual sua opinião sobre a progressão continuada?
Guiomar:
A progressão continuada já foi implantada em São Paulo há quase 10 anos. Ela gerou, por uma série de circunstâncias históricas - que em parte eu nem vivi, pois não estava no Brasil – uma resistência bastante grande da parte dos professores. Na verdade eu considero que não são resistências à questão técnica da progressão continuada, devem ter por trás delas outras questões que não se explicitam, se revelando em relação à progressão continuada, que maldosamente alguns professores chamam de promoção automática.
Carol:
Que não é a mesma coisa…
Guiomar:
Absolutamente. A Promoção Automática não é uma questão pedagógica, é uma questão de falta de ética profissional. Quem não ensina um aluno o ano inteiro e manda ele pra frente, não está cumprindo o seu dever. Agora se ele ensinou e se o aluno pode crescer neste ano o pouco ou o muito que o aluno cresceu tem que ser considerado ao final do ano. Você não pode fazer uma criança voltar eternamente atrás sem considerar o que ela cresceu durante um ano. Isso quer dizer progressão continuada, literalmente. Um progressso que se dá de maneira continua.
Carol:
Como isto é feito na escola pública? Como recuperação paralela?
Guiomar:
Como recuperação paralela. Como um processo de avaliação interna, que tenha muito a ver com a compatibilização da avaliação interna com a externa. Esta avaliação interna que a escola deveria fazer não olhando o espelho retrovisor, porque quando isso acontece você só vê o que aconteceu, e não o que falta para frente. A avaliação serve muito para dizer não só o que você andou, mas o quanto falta pra você andar. Se você só olhar para trás, sempre vai querer voltar para o ponto de partida. Nós cometemos esses absurdos com as crianças. Ela reprovar em uma série em uma disciplina.
No ano seguinte ela faz a série inteira novamente, incluindo as disciplinas em que foi aprovada, e quando chega no final do ano corremos o risco de ela reprovar não mais na disciplina que ela tinha reprovado no ano anterior, mas em outra, e isto põe em cheque a avaliação dos professores, a avaliação da escola. Como é que se faz com uma criança que foi reprovada em matemática e que tem que fazer português de novo, se o professor de português considerou que ela tinha aproveitamento suficiente?
É uma questão muito delicada e que deveria ser posta para reflexão de todas as equipes escolares. Toda vez que fala-se nisso no exterior as pessoas acham que estamos enganados, que não deve ser assim. E é. Nós sabemos que é. Algumas escolas inovaram, criaram a dependência, principalmente no ensino médio, que eu saiba, mas isso não é uma prática constante nas nossas escolas.
Carol:
Vai ver isto acontece porque a escola pública já sofre com a contratação de temporários, a falta de infra-estrutura… Como é que ela vai gerenciar um sistema de dependências, de recuperação paralela?
Guiomar:
Pois é. E no meio desta precariedade toda quem paga o pato é o aluno, a corrente arrebenta para o lado dele. No meio desta precariedade, com critérios que são muito discutíveis…
Carol:
Guiomar: Como você vê o problema da formação de Professores pelas Universidades Brasileiras. Como esse problema pode ser enfretado?
Guiomar:
Este é o objeto da minha palestra e é bem longo. Eu acredito que é o grande obstáculo construirmos uma educação de qualidade no Brasil. Enquanto a gente não mexer seriamente, profundamente, na própria estrutura da formação do professor, eu acho que não vamos conseguir sustentar um movimento de melhoria. Podemos até conseguir uma melhoria e aí entra uma nova leva de professores e temos que começar tudo novamente.
O professor é aquele que vai sustentar isso por 25 anos pelo menos. Se você tiver um professor bem formado que seja devidamente apoiado ao longo e principalmente no início da carreira, ele terá condições de durante 25 anos dar sustentação à uma inovação para que ela crie raízes. E isto não vai acontecer com este tipo de professor que hoje estamos formando. Estamos formando professores que não tem nem mesmo a educação básica no ponto em que é preciso ter para poder entrar numa classe para dar aula na educação básica.
Carol:
Então o problema seria político, não?
Guiomar:
É um problema técnico porque existem divergências inclusive quanto às questões do currículo, enfim, questões pedagógicas, e é um problema político muito sério porque envolve uma instância da educação que é o ensino superior sobre a qual aqueles que empregam os professores não têm poder de decisão. Teríamos que ter com o ensino superior um tipo de relacionamento aonde de fato as secretarias estaduais e municipais pudessem dizer o que é que falta nos professores que eles estão recebendo.
E o que é que eles precisam realmente para que a universidade faça uma força para poder responder à esta demanda. Hoje em dia a universidade praticamente nem escuta o que dizem as pessoas que trabalham na educação básica. Temos um curso de educação, uma equipe preocupada, mas os professores vêm de todas as areas, da Física, da Química, da Matemática, da História, da Geografia, da Língua Portuguesa…. Cada um desses é um feudo dentro do ensino superior brasileiro. E nós não temos nenhuma instituição que articule isso debaixo de um projeto pedagógico comum. Então estamos muito mal servidos em matéria de formação de professores.
Carol:
O programa Teach for America é um projeto que incentiva os melhores alunos de universidades como a Harvard a dar aulas por um período de 2 anos em escolas públicas americanas, com a promessa de serem melhor colocados no Mercado de trabalho após a experiência e já está sendo implantado em outros países. O que você acha deste projeto?
Guiomar:
É um projeto muito interessante, que tem tido sucesso nos Estados Unidos, mas ele não é uma resposta de massa. Não seria aqui e não é nos EUA, porque não se precisa de professor as centenas, precisa-se de professor aos milhares. Ou a centenas de milhares. No Brasil temos cerca de 2 milhões de professores exercendo efetivamente o magistério? Se tivermos um turn over de 5% disso, que não é muito, teremos 100 mil professores por ano para formar. As faculdades que têm muita vaga tem 3, 4 mil… E essas já são as grandes que oferecem ensino massificado totalmente sem qualidade. As universidades públicas que têm o ensino um pouco mais qualificado, são restritas no ponto de vista de vagas.
Então temos um problema para o qual não adianta restringir só à universidade pública, temos que chamar a iniciativa privada. 90% dos professores do Brasil se formam e se preparam na iniciativa privada. Temos que contra com eles, não há como. Neste sentido é mais fácil até, porque a iniciativa privada é sensível ao Mercado, então se eu tenho um Mercado que exige uma coisa, ela vai atrás. Acontece que as próprias secretarias não sabem fazer a demanda do perfil profissional do professor. Além desse desencontro entre Educação Básica e Ensino Superior,esse lado de cá também não tem clareza do perfil de professor que precisa, o que cria uma situação de anomia total, que parece bem mas não está e quem paga o pato são os alunos.
Carol:
Que outro projeto você está envolvida no momento?
Guiomar:
Estou preparando um projeto para a FESP-RJ, de iniciação de novos professores, que em espanhol se chama INSERSIÓN, e talvez fosse um nome até melhor. Inserção do novo professor na carreira do magistério.
Carol:
Tem a ver com reciclagem?
Guiomar:
Não, tem a ver com o que acontece quando o professor termina seu curso de graduação e vai para o exercício. O que acontece quando o médico termina sua graduação e vai para o exercício? Ele vai para um hospital onde ficará trabalhando sob a supervisão de um médico experiente. Você pega um aluno recém formado em engenharia e não dá um projeto de grande envergadura para ele fazer os cálculos. Não se põe um piloto que saiu do treinamento para pilotar um boing sozinho.
Mas nós pegamos um professor que saiu do banco da faculdade e jogamos ele dentro de uma sala de aula com 35 alunos, com enorme heterogeneidade. Alunos com universo de vocabulário, de cultura, totalmente díspares. E pedimos à ele para dar conta desses alunos. Estamos pedindo muito mais do que ele tem condição de dar. Agora agregue à isto que ele saiu de um curso de má qualidade e está pronto, é claro que a escola brasileira não dá certo. É admirável os casos em que ela dá, apesar de tudo. Esses casos temos que estudar com muito carinho, porque esses é que são anomalia num sistema como este.