Divulgo aqui artigo escrito pelo educador Claudio Mendonça, contra a repetência escolar:
Foco no aluno
Novembro de 2007. Assisto a uma reunião de pais em uma escola particular que que exibe outdoors pela cidade comemorando o “primeiro lugar no Enem”. Presentes o Diretor Geral da unidade e a Coordenadora Geral Pedagógica. A mãe de um aluno perguntava como havia sido o desempenho de uma turma de sétima série na prova de Matemática.
Ao ouvir que mais de 60% dos alunos haviam tirado nota inferior ao grau estabelecido como mínimo para aprovação, ela declarou: "Meu filho gosta da professora e da matéria e faz o “reforço” da própria escola todos os dias, mas jura que ele e muitos colegas estudaram até a página 92 do livro e essa matéria estava na página 97. Aliás, algumas questões são cópias exatas de exercícios do livro".
Seguiu-se então um longo debate sobre se o professor havia informado "o que ia cair na prova" de forma correta, se os alunos haviam anotado no caderno ou "confiado na memória" e, o que mereceu maior atenção do diretor, o fato de existirem questões idênticas às do livro; o que poderia, segundo ele, gerar "um favorecimento" daquele aluno que fez repetitivamente os exercícios do material didático.
Alguns pais exigiam uma nova prova, o que era prontamente rechaçado pela equipe pedagógica, afinal, "seria injusto com os demais". Não consegui entender claramente as "razões" e não me atrevi a propor as soluções para o impasse, mas estava claro ali que a avaliação parecia se colocar num patamar de disputa entre professor e alunos, e deles entre si, onde a prova fixaria os limites e regras do embate.
Mais adiante, assistimos a uma minuciosa explicação do professor de Matemática, que demonstrou uma curva de graus que dispunha necessariamente um grupo de alunos na média, acima da média e abaixo da média, o desvio padrão e a esperada taxa de reprovação “cientificamente arbitrada”.
A curva garantia uma taxa constante de reprovação, relativizando as notas dos alunos em função da aprendizagem geral da turma. Nesse ponto a Coordenadora Pedagógica afirmava: "Está certo, afinal, numa recuperação onde todo mundo passa de ano há algo de errado...".
Todos balançavam a cabeça concordando. A partir daí me ocorreu o pensamento de que algumas verdades absolutas dos sistemas de avaliação ultrapassam as fronteiras das salas de aula e ganham contornos em alguns, digamos, fundamentos de nossa sociedade.
Parece absolutamente razoável em nosso país que o professor se coloque numa posição de "fonte do conhecimento"; que toda a aprendizagem gire entorno "do que vai cair" na prova e que se fixem metas cognitivas onde, se alguns alunos conseguem atingi-las os demais poderiam ter chegado lá se não fossem desinteressados, bagunceiros ou preguiçosos.
A repetência parece ser necessária, inclusive, pra emprestar seriedade ao sistema educacional e a recuperação de estudos uma ferramenta que mistura oportunidade de nota e punição. A competitividade entre os alunos acontece no dia-a-dia da sala de aula, e o fracasso de uma parcela numerosa destes num teste parece reconfortar os pais (seus filhos não estão sozinhos nas notas baixas) além de aprisionar o professor que luta pela padronização cada vez maior da avaliação, buscando comparar os estudantes entre si.
A conhecida "segunda chamada" tem necessariamente que ser mais difícil que a primeira, afinal, os alunos terão mais tempo pra estudar e, se for diferente, é provável que todos os alunos "fiquem doentes" (!) para fazer a prova depois, com mais calma e fora da inexorável pressão estabelecida na semana de testes. Os trabalhos em grupo são raros e encarados com pouca seriedade pelos alunos e pais.
Numa outra oportunidade ouvi o seguinte relato de um responsável: “Meu filho, no ano passado, começou a ler um livro do Sherlock Holmes por sugestão da própria escola e se apaixonou pelo gênero. No final do ano fomos à Bienal e ele escolheu com entusiasmo mais dois dessa série. Leu um nas férias e agora gostaria de ler o seguinte, mas como a agenda dele de aulas extraclasse, dever de casa e provas semanais é muito intensa, ele não consegue conciliar essa leitura com a "leitura obrigatória" de Dom Casmurro, do Machado de Assis”. Por que ele não pode ler o livro que escolheu? Perguntei. O professor disse que isso seria impossível, senão ele não teria como fazer a avaliação para constatar se o aluno havia mesmo lido o livro, afinal a avaliação deveria ser padronizada e sem o temor da nota baixa “ninguém lê”. Dias antes assistia a uma palestra de Rubem Alves em que ele contava sobre uma escrita no mural da biblioteca da Escola da Ponte (Cidade do Porto, Portugal), com os mandamentos do setor e o primeiro deles era "nenhuma criança será obrigada a ler aquilo que não deseja ler...".
Até que ponto essa padronização é necessária? Por que a escola não desenvolve estratégias de aprendizagem cooperativa buscando que os alunos não apenas desenvolvam atividades em grupo, mas aprendam como um time, ajudando e encorajando um ao outro a aprender e superar os desafios
[1]?
O aluno, simplesmente, quando não atinge as notas das provas, "leva bomba". A avaliação escolar frequentemente não é utilizada, para diagnosticar problemas e buscar soluções. Ao revés, é encarada como um duelo onde uma pegadinha (manobra para confundir) na prova é esperada com ansiedade pelo estudante. Por conta disso, dentre outras razões, do total de 53 milhões de crianças matriculadas nas escolas, identificam-se apenas 47 milhões entre 6 e 17 anos.
Ou seja, temos seis milhões de pessoas a mais no sistema (repetentes em sua imensa maioria), resultando em um custo para o Brasil de cerca de R$12 bilhões a cada ano. Dinheiro jogado fora se analisarmos os números do Prova Brasil que mostram claramente que o desempenho dos alunos com um histórico de retenções é inferior ao dos que nunca repetiram o ano. Ainda que seja óbvio, vale lembrar que a repetência, via de regra, não faz alunos melhores.
Claudio Mendonça é Presidente da Fundação Escola de Serviço Público do Estado do Rio de Janeiro (FESP-RJ)
[1] Cooperative Learning – Robert Slaving – 1995